Estudo sugere contaminação de água na Bahia
A água filtrada da casa da atendente de farmácia Viviane Alves, 28 anos, sempre teve o gosto de frescor que dava gosto de saborear. Só que, há dois meses, esse sabor deu lugar ao estranhamento.
“Tenho notado diferença no gosto da água, como se tivesse algum produto que não dá para identificar. Geralmente usamos o filtro, daí achávamos que era algum problema com ele, mas não era”, conta ela, que descobriu nessa terça-feira (24) que a água distribuída em Camaçari, onde reside, está contaminada por um ‘coquetel’ de 27 agrotóxicos.
Além de Camaçari, outras quatro cidades completam a lista de municípios baianos que atualmente têm a água contaminada com esse mesmo quantitativo de pesticidas: Bom Jesus da Lapa, Itabuna, Santa Maria da Vitória e São Félix do Coribe.
As informações são resultado de um cruzamento de dados realizado pela Repórter Brasil, a partir de dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde, com testes feitos em 2022.
Apesar dos indicativos de contaminação, a maioria dos exames feitos na água dos municípios identificou uma concentração dentro do limite considerado seguro pelo Ministério da Saúde para cada tipo de substância de maneira isolada. Isso significa que a presença em uma amostra não necessariamente acarreta problemas para a saúde, embora a interação entre os diferentes pesticidas preocupe.
Lençóis contaminados
Em Santa Maria da Vitória, no oeste da Bahia, o professor Marco Aurélio Farias, 50 anos, deixou de beber a água distribuída pelo Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) há anos por já ter verificado irregularidades no que diz respeito ao fornecimento da água local, como saídas de esgoto numa afluente do Rio São Francisco, e por saber do uso de variados agrotóxicos em fazendas da região.
“Existem grandes fazendas e extensões de terras do agronegócio que acabam sempre utilizando de algum elemento químico para fertilizar suas terras ou mesmo as plantações. O tipo de solo aqui da região tem uma composição que permite a infiltração desses resíduos químicos para os lençóis freáticos que, na verdade, são responsáveis pelas nascentes desses rios que cortam a região. Logo, eu evito desde sempre de beber a água local e só bebo água mineral”, relata.
Por outro lado, a professora Janaína Aragão, 44 anos, consome a água fornecida em Santa Maria da Vitória sem queixas de diferenças no gosto, na aparência ou no cheiro. Contudo, ela afirma estar ciente de que a água distribuída na cidade pode oferecer riscos à saúde.
“Algumas pessoas conhecidas têm reclamado bastante da qualidade da água. Embora isso não seja uma novidade para nós, esta pauta é uma luta antiga das pessoas conscientes da nossa região. O agronegócio sem planejamento acaba atingindo toda população”, afirma.
Em Bom Jesus da Lapa, ainda no Oeste do estado, a situação da água é semelhante, mas a hoteleira Nilza Magalhães, 52 anos, diz ter sido pega de surpresa pela notícia de que a água que sai da torneira da cidade está contaminada. “Não tem cheiro, a água está do mesmo jeito. Para mim, foi surpresa. Comentei até com meu esposo e ele ficou surpreso também”, pontua.
Riscos do ‘coquetel de agrotóxicos’
A maioria dos exames feitos na água identificou uma concentração dentro do limite considerado seguro pelo Ministério da Saúde para cada tipo de substância de maneira isolada.
Segundo Roberto Márcio Souza, mestre em química analítica ambiental e professor da UniRuy Wyden, esse coquetel de agrotóxicos pode causar uma série de danos ao longo do tempo não apenas para os seres humanos, mas também para os vegetais e o solo existentes na localidade contaminada.
“Essas substâncias podem ter comportamentos diferenciados. Elas podem se decompor rapidamente, mas também podem perdurar por muito tempo. Quando há uma mistura desses agrotóxicos no ambiente, eles vão se comportar quimicamente de forma imprevisível. Nesse caso, há uma grande periculosidade. Pela sua toxidez, principalmente para humanos, existirá uma grande possibilidade de complexidade no sentido nutricional e também a aquisição de problemas hormonais e câncer, a depender da toxina e da sua concentração”, diz.
O professor Roberto ainda chama atenção para a necessidade de uma política de solução no que tange o abastecimento de água para as populações atingidas, seja por meio da substituição da água contaminada ou com um plano a longo prazo de análise dessas águas de abastecimento.
Lucas Alves Pereira, psiquiatra especialista em intoxicações, aponta que a ingestão ou contato na pele com agrotóxicos podem causar intoxicações de curto ou longo prazo. No caso da ingestão de água, a intoxicação a curto prazo pode causar sintomas como fraqueza, cólica, vômitos, convulsões, náuseas, tremores e conjuntivites. A longo prazo, o quadro crônico pode incluir dermatites, arritmias, alergia, asma, câncer, fibrose pulmonar e malformação fetal no caso de contaminação de mulheres grávidas.
O especialista alerta que não há tratamento específico para os casos de intoxicação. “Devemos pensar em prevenir, principalmente através do uso racional dos agrotóxicos”, aconselha.
Prefeituras e concessionárias negam intoxicação
A reportagem procurou a prefeitura dos cinco municípios baianos que foram citados pelo estudo, bem como suas respectivas distribuidoras de água.
Em nota, a Prefeitura e o Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Bom Jesus da Lapa, disseram que que a SAAE tem feito o tratamento, monitoramento e o controle da água fornecida aos seus usuários. Ainda, informaram que “os níveis de agrotóxicos na água fornecida para a população local sempre se mostraram abaixo do limite de segurança definido pela portaria GM/MS Nº 888, de 4 de maio de 2021”.
A Empresa Municipal de Águas e Saneamento (Emasa), responsável pelo fornecimento de água em Itabuna, não reconheceu a informação de que Itabuna e qualquer outro município baiano façam parte das cidades com água contaminada por agrotóxicos, conforme indica o estudo. Em nota, a Emasa ainda disse que faz monitoramento diário da água fornecida à população de Itabuna.
“Além desse processo, a cada mês o Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde e o Núcleo Regional de Saúde (NRS) da Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) fazem a análise da água tratada pela EMASA. Pela legislação, a empresa também é obrigada a cada semestre a realizar avaliação da qualidade da água através de laboratório independente”, completa a nota.
A Empresa Baiana de Águas e Saneamento, responsável pela distribuição de água em Camaçari, ressaltou que a água fornecida no município atende rigorosamente os padrões de portabilidade do Ministério da Saúde e que os resultados da análise podem ser conferidos no Sisagua. “A empresa realiza amplo monitoramento por meio de sua rede de laboratórios que acompanha 16.880 Pontos de coleta, localizados em mananciais, Captações de água, Estações de tratamento de água, poços, reservatórios E redes distribuidoras em sua área de atuação”, enfatiza.
Procurado, o SAAE de Santa Maria da Vitória e São Félix do Coribe não respondeu ao pedido de posicionamento sobre a situação da água na cidade.
A Secretaria de Saúde de Santa Maria da Vitória e as Prefeitura de São Félix do Coribe e Camaçari também não responderam a tentativa de contato feita pelo CORREIO.
Projeto de Lei controverso
O Projeto de Lei (PL) 1.459/2022, que determina prazo para a obtenção de registro de agrotóxicos no Brasil, centraliza no Ministério da Agricultura as tarefas de fiscalização e análise desses produtos para uso agropecuário, pode ser votado pelo Senado Federal nas próximas semanas, conforme declaração recente da ex-ministra da Agricultura, a senadora Tereza Cristina (PP-MS), que também é relatora do projeto na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA).
Na Câmara dos Deputados por 20 anos, o projeto de lei (identificado até ser aprovado pelo Senado como PL 6299/02) foi aprovado no dia 9 de fevereiro de 2022.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitário (Fiocruz), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), críticos à proposta, assim como a maioria dos ambientalistas, defendem que o projeto prioriza os interesses econômicos e põe em risco a saúde da população, sobretudo aquela que habita em áreas rurais e estariam ainda mais suscetíveis à intoxicação por meio de água e alimentos.
Do outro lado, grande parte dos representantes do agronegócio argumentam que as propostas do PL contribuem para uma agricultura moderna e desenvolvida, visto que a flexibilização do sistema de registro de defensivos agrícolas tornaria o processo mais ágil e eficiente, assim como reduziria os custos para os produtores rurais.
A Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia (SDR-BA), a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia e a Agência de Defesa Agropecuária da Bahia foram procuradas pela reportagem para se posicionar sobre o projeto de lei, mas não responderam.
Informaçõess do Correio / Foto: Agência Brasil
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