Dificuldade de rastrear VPN tende a restringir multas a quem acessa o X
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de multar em R$ 50 mil por dia quem acessar a rede social X com uso de VPN (virtual private network), descumprindo a decisão do ministro Alexandre de Moraes, é praticamente inexequível de ser aplicada, de forma generalizada, para os mais de 20 milhões de usuários brasileiros. É a visão de especialistas em tecnologia consultados pela Gazeta do Povo, para os quais a tendência é a punição seletiva de alvos já investigados na Corte no âmbito do inquérito das fake news.
Na decisão em que bloqueou o X, confirmada nesta segunda-feira (2) pela Primeira Turma do STF, Moraes determinou que a aplicação de multa diária de R$ 50 mil “a pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo ‘X’, tal como o uso de VPN (‘virtual private network’), sem prejuízo das demais sanções civis e criminais, na forma da lei”.
O VPN é uma tecnologia, disponível há anos, que impede a localização do dispositivo que acessa a internet, usando servidores de outros países para realizar a conexão. É oferecido de graça e de forma paga por empresas brasileiras e estrangeiras, com e sem cadastro com dados pessoais dos usuários. É usada também como ferramenta de segurança, disponibilizada em programas antivírus, para impedir o rastreamento ou captura de dados de quem acessa a rede.
Por isso, na visão de especialistas, seria extremamente difícil que Moraes, mesmo com a colaboração da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), conseguisse rastrear o uso do VPN para pegar todos os usuários no Brasil que acessam o X para aplicação da multa. A Gazeta do Povo enviou ao gabinete do ministro e à agência questionamentos sobre se isso seria feito e como, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
“Para fazer esse controle amplo seria necessária a colaboração de todas as empresas de VPN fazendo o monitoramento. Se o STF seguir esse caminho, seria um passo grande na direção de uma lógica chinesa de controle da internet”, diz Ivar Hartmann, professor no Insper, doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em regulação da internet.
Ele e outros especialistas consideram mais provável que Moraes foque em usuários que continuarem postando no X e que já sejam investigados por ele por ofensas dirigidas ao STF nas redes. Nesses casos, o ministro poderia mandar a PF apreender computadores e celulares, e com perícia, provar que a pessoa usou “subterfúgios tecnológicos” para acessar a plataforma.
“Não existe um meio tecnológico direto para fazer a verificação dos usuários que se utilizaram de VPNs para acessar o X, salvo a análise individual dos dispositivos que eventualmente se utilizaram destas tecnologias”, diz Caio Miachon Tenorio, advogado com atuação na área de direito digital e privacidade e autor do livro “Manual de Tutela à Privacidade na Internet: Medidas Protetivas e Responsabilidades”.
Mas, mesmo nesses casos, no âmbito técnico e administrativo, seria difícil obter a colaboração das empresas que fornecem conexões VPN para rastrear os acessos ao X. Não só porque muitas estão fora do Brasil, mas também porque o produto que oferecem, num mercado altamente competitivo, é oferecer ao usuário máxima segurança sobre seus dados de acesso à internet. Se alguma dessas empresas fornecesse os dados, perderia a clientela.
“Como saber quem é quem? A empresa estrangeira de VPN não necessariamente pede CPF do usuário brasileiro que a contrata. E uma empresa estrangeira de VPN pode não querer colaborar”, acrescenta Hartmann.
“Do ponto de vista tecnológico, é extremamente difícil, senão impossível, para o STF ou a Anatel monitorar todos os acessos ao X via VPN no Brasil, especialmente considerando que o uso de VPNs pode mascarar o local real dos usuários. As VPNs, por definição, criptografam o tráfego e alteram o endereço IP dos usuários, dificultando a identificação precisa do local de origem”, diz Alexander Coelho, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Digital e proteção de dados.
Luiz Fernando Plastino, advogado do Barcellos Tucunduva Advogados (BTLAW) e especialista em Direito de Informática e mestre em Direito pela USP, diz que até existem formas de monitorar ou bloquear o tráfego via VPN. “Mas, independentemente de qualquer possibilidade teórica, é inviável monitorar todas as pessoas, especialmente sem a cooperação dos provedores de conexão e de serviços de VPN”, diz ele.
Ele lembra que, na decisão original, Alexandre de Moraes tentou impedir que Google e Apple disponibilizassem em suas lojas virtuais aplicativos de VPN, mas ele mesmo suspendeu esse trecho da decisão no mesmo dia.
Para Hélio Moraes, advogado especializado na área de proteção de dados e inteligência artificial, mesmo que essa ordem estivesse em vigor, usuários poderiam comprar serviços de VPN em outras lojas não oficiais. Ele também considera impossível rastrear, em larga escala, quem usa a tecnologia para acessar o X.
“Acho impossível de fazer esse controle, são milhares de pessoas. E depois que você acessa a VPN, você pode ir para o X, para a Apple TV, para um cassino online, joguinhos online em rede, para um site de pornografia, para transações em criptomoedas, enfim vários acesso lícitos e outros tantos ilícitos, seria um trabalho insano”, diz Hélio Moraes.
“A tendência seria pegar aqueles que continuam ativos no X, especialmente aqueles que já fazem parte do inquérito, mas obviamente a medida gera uma insegurança jurídica enorme para todos os demais que utilizam as VPNs licitamente”, acrescenta o advogado.
Para ele, a Anatel também não teria competência para requisitar esses dados. “A agência regula os serviços de telecomunicações, como a telefonia e infraestrutura da internet, mas o uso de VPNs em si não se enquadra como um serviço de telecomunicações que necessitaria de licenciamento ou autorização específica por parte da Anatel, pois são tecnologias que permitem a criação de conexões seguras e criptografadas sobre uma rede menos segura, como a internet”.
Informações da Gazeta do Povo / Foto: Rosinei Coutinho/STF
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